15 de maio de 2017
A gente estava na estrada há uns 3 meses e não tínhamos um centavo no bolso. Mas quer saber? A gente não dava a mínima.
Porque eu dei toda toda a nossa grana pra aquele mendigo mesmo? Hahahaha
O Victor:
-De novo, caralho?
E, apesar de tudo, ele faria a mesma coisa.
Sempre dávamos um jeito.
A verdade é que a gente parecia dois pássaros viajando por um ambiente completamente desconhecido. Fora do habitat natural, da zona de conforto...
Contando principalmente com Deus, que veste diariamente até os lírios e o trigo. Por que nosso Pai não haveria de nos sustentar, né?
Abrimos nossas asas pela primeira vez e decidimos voar.
Deixamos o ninho, a família e tudo pra trás, mas será que alguma vez, já tínhamos tido algo?
-Claro que sim, mas nunca liberdade.
Aliás, deixa eu escrever de novo:
Liberdade.
Esse era um grito por liberdade que ecoava pelas nossas cabeças e;
pela estrada.
Nossa Kombi ia aguentar mais uns 30 km na reserva do combustível e estávamos em qualquer lugar entre o Acre e Amazonas, de acordo com o gps, que tinha 12% de bateria.
Eu tava dirigindo e o meu irmão tava capotadasso do meu lado.
Pilotei uns 10 km e finalmente achamos um posto. Pensei: lar doce lar.
Deixei o lutador dormindo e fui fazer meu papel de vendedor e poeta. Consegui 50 pila vendendo música e mais uns 20 pela simpatia.
Pra uma hora de "trabalho" tá bom né?
Coloquei de 30 de combustível e com os outros 40 comprei comida e bebidas pra gente. Eu sempre fazia as compras.
Já dava pra sobreviver mais uma semana.
Aliás, viver.
Acordei o veado e falei:
-Trouxe comida pra gente, corno.
-Valeu sua puta.
Aquela voz rouca de sono era engraçada pra caralho.
É, a gente sempre mantinha o respeito em primeiro lugar.
Amizade de homem funciona assim:
Enquanto a gente tava xingando tava de boa, era só não deixar o silêncio permanecer muito tempo.
Irmãos, né.
Eu sempre fazia uma piada racista, machista ou xenofóbica;ou tudo isso ao mesmo tempo; e a gente gargalhava por uns 2 km.
Mas as dele eram bem melhores e:mais sujas também.
Acho que foi nosso humor sadista que fez a gente não desistir da viagem. No começo, a gente não tinha a mínima ideia do que ia fazer quando acabasse a grana. Hoje, acabar a grana é um problema matinal tipo mau-hálito.
Vira e mexe a gente discutia religião, política e coisas que as pessoas evitam conversar. Eram os melhores assuntos.
O legal é que como os dois sabiam lutar (Ele muito melhor que eu) a gente nunca brigou de verdade. Apesar de eu sempre ironizar as coisas, ele ser sarcástico e fazermos piadas desrespeitando as nossas próprias progenitoras (Um xingando a mãe do outro)
-Com todo respeito, claro.
A fuga da realidade é uma das formas de viver. Sempre que alguém se aprofundava demais fazia meu papel de alienado que o lutador não conseguia segurar a risada. Ninguém entendia.
Acho que a nossa viagem era uma forma de nos alienar e, ao mesmo tempo, achar a verdade.
Quando tinha um wifi eu ligava pra ela, ele ligava pra sei lá quem e a gente dava aquela satisfação pra família.
Até porquê a gente não tinha crédito fazia uns bons meses.
Uma câmera, dois celulares, dois nomes sujos, uma Kombi, um violão, um Cajon, duas pranchas e dois skates. Um colchonete daqueles de academia, dois travesseiros e dois cobertores, uma caixa térmica daquelas de praia, duas cadeiras de praia e um guarda-Sol. Um mini-fogão e um mini-frigobar, muitas poesias e músicas no papel que a gente costumava compor na estrada (A gente aproveitava de fato uns 10%).
Ah, tinha o notebook também. Essa era nossa riqueza líquida total. E umas moedas. Acho que coloquei tudo.
O legal é que apesar de fudidos, a gente sempre pegava uma lembrança dos lugares por onde passava. Era sempre pelo menos uma por cidade. Algumas deixaram mais lembranças que outras, mas todas foram de alguma forma, importantes. Fotos, roupas, souvenirs...
Nosso canal tava começando a bombar e, por incrível que pareça: as pessoas preferiam conhecer nossos problemas. Ouvir nossas reclamações e rir sobre as nossas desgraças. Eu gostava que levassem meus problemas a sério, pensei.
Como, se eu mesmo faço da minha vida uma piada? Que seja.
Eu escrevia muito mais que ele, a parada dele eram as fotografias, edição, filmagem e tal. Ele também era profissional na arte de brisar.
O eu que virou nós, meu blog, depois que comecei a viajar começou a ter muito mais acessos.
Será que estavam com saudades e essa era uma forma de me alcançar?
Esse blog representou uma fase bem instável da minha vida e, agora, ele não tem mais o mesmo destinatário em todos os textos.
O eu que virou nós podia se tratar, agora, até da relação que eu tava compartilhando com meu bro, de irmandade. Mas claro, esse não era o caso no começo.
Entretanto, por incrível que pareça, ela conseguiu implantar na minha cabeça o pensamento que os meus melhores textos são pra ela.
Meu bem, dessa vez você se enganou.
Meus melhores textos são pra Nós.
Voltando,
A gente não era mais criança mas a nossa infantilidade era o que nos mantinha sãos e completamente loucos ao mesmo tempo. E sustentava o canal, também.
O último vídeo do canal tinha sido há 7 dias e estavam cobrando a gente por mais conteúdo.
Era uma bosta ter patrocínio. Mas ter uns mil reais na conta às vezes era bom. Ô se era. Valeu google ads e afins.
Enquanto a gente comia uns lanches naturais, falei:
-Mano, vamo gravar?
-Claro.
-Qual vai ser o tema?
-Como sobreviver na estrada.
-Boa.
-Será que vão gostar?
-E desde quando a gente se importa?
Pra variar, rimos.
Era o nosso vigésimo vídeo a ser publicado, mais ou menos. Mas a gente tinha material pra quase um ano, se fosse publicar uma vez por semana até o fim desse ano. Era só fazer uma boa edição e organizar o conteúdo que a gente já tinha.
Tínhamos horas de gravação só de paisagens, músicas, umas "entrevistas" que a gente fazia pelo caminho...
Ligamos a câmera e colocamos no lugar do gps pra filmar a gente de frente, como se estivessem filmando de fora da Kombi. Só que de dentro.
A gente falou groselha por uns 15 minutos, de onde a gente sabia que ia ter uns 2 minutos de glória e foi mais ou menos essa a duração do vídeo em si. Ficou engraçado.
Os erros de gravação sempre eram os mais comentados. Depois dos erros o vídeo tinha um link que encaminhava pra outro vídeo, dessa vez um tutorial de verdade de como a gente estava fazendo pra sobreviver na estrada.
A gente tava em casa.
Aliás, que saudade da minha família, das minhas namoradas e amantes, dela...
Meu irmão não queria assumir, mas, acho que ele tinha saudades de tudo e todos também, até da minha pequena.
Tava muito quente, eu não consigo pensar direito nem escrever no calor. Abri uma das infinitas cervejas que a gente tinha com a gente e meu corpo pareceu gritar de alegria. Brindamos.
Esse texto tá muito morno. Pra mim.
Da próxima eu falo dos pedágios que a gente não pagou, das conversas com a polícia, dos trampos escrotos que a gente fez, das mulheres...Ah, as mulheres...
Dos anjos que a gente conheceu no caminho, dos demônios...
Enfim, pelo menos eu sabia que parte de mim estava lá e, a outra parte, com ela.
-Devaneios de um futuro não tão distante, parte XIV